sob as manchas

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me aconteceu de eu deixar a bolsa
de pano
ao lado de um isopor com bebidas
que vazava
e os poemas os livros o caderno
de dentro dela
se encharcaram de gelo
derretido

olhando para as folhas
tentando sobreviver
sob o sol
me falaram: por que você não faz
uma pergunta
sobre o registro?
pensei: sim! é claro!
passei semana matutando sobre a memória o passado o arquivo
em meio a leituras
que me falavam coisas muito bonitas que eu poderia citar
e pareceu tudo muito maravilhoso, mas não era bem isso, sei lá
havia dor
e pensei se eu gostaria apenas que isso fosse um poema leve
sobre estar apaixonada
mas isso não é um poema
sobre a beleza do vazio
é uma espécie de grito
sob as folhas do caderno dos livros contorcidas de água
que me fizeram pensar sobre os relatos
que eu não posso ler
aquém e além das manchas
relatos em pedaços
relatos de fatos que desconheço
relatos dos escombros
relatos que martelam embaixo do travesseiro
relatos que eu não sinto
e que têm tanto a dizer

não sei como ler
os relatos o caderno
não sei o que fazer
com as letras molhadas
não sei como passar
como atravessar os papeis
os buracos parecem rasos demais
profundos demais

pra além da vista
disparam gritam
nesses papeis
molhados
urgentes
vozes sobre o passar
hoje
por entre ou apesar
dos buracos
das manchas

irrompem vidas que interrogam
como ler essas palavras agora?

 

Uma resposta em “sob as manchas

  1. ele todo platafina, platina, fim-começo, primeiro dia da criação, último dia de expiação, e vai indo, recuando, antes do primeiro dia, depois do último dia, ai Karaxim, oitocentos graus celsius, vou me consumindo, dei todas as ordens e ainda estou no começo, a carne não me deixa, o saco de memória é de terra molhada, pesado como essa flor de água, japonesa, que devo fazer da carne, das lembranças, de mim que me chamava Pergunta-Coisa na boca do pai, Disseca-Tripa na boca da mãe, fui tão pobre, Karaxim, tive tanto medo dessa que me pariu, bruxa-harpia-deusa, o seio estufado e a minha boca presa, suguei suguei e parecia mel e de repente areia e o cheiro arrepiado desse vau entre os dois seios , Pergunta-Coisa e ela ria, Disseca-Tripa os dois grasnavam e eu esfregava a pedra da cozinha, os pés dentro d’água, perguntava: água água. água molhada, o que é isso, mãe, que molha e por que a gente chama de água essa coisa molhada? (Hilda Hilst, “Qadós”, 1973)

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