desaprender
processo
natural
trocar de pele
processo
natural
trocar de pele
O tempo, o tempo, o tempo e suas águas inflamáveis, esse rio largo que não cansa de correr, lento e sinuoso, ele próprio conhecendo seus caminhos, recolhendo e filtrando de vária direção o caldo turvo dos afluentes e o sangue ruivo de outros canais para com eles construir a razão mística da história, (Raduan Nassar)
Fera
A minha pele
Tem tristezas
Eu confio
Naquilo que vejo:
A mulher
Se pudesse
Só latir
A ponto
De interagir
com a minha
pele tem tristezas
tem um livro
que não existe
ainda medo
e direção
foca
a pele está longe
de mim
acho
preciso trocar
a pele
trocar a pele
por asas
sinto
a pele está
longe de mim
a casa da pele
onde é
aqui?
medo e direção
carnívora
sempre fico
me perguntando
o pasmo essencial
estou onde
é aqui?
sentir o tempo
se ao nascer reparasse que nascera deveras
contida aqui
a gente se torna
mais infeliz
quando retorna
fera carnívora
os deslocamentos
dos abraços
dados
não dados
os olhos nos
velam
foca
gostei bastante
desaprender
o tempo das coisas
o medo
direção
Um ventre é um
ventre é um ventre
é um vem
Ana Amália Alves
o coração cima da cabeça
fico me perguntando
como latir alto e sem pressa?
o peso da pele
da alma
do sangue
renascer
em labirintos assustadores
as palavras constelando
a cultura o destino
pensar menos
menos
menos
menos
a pele velha
troca?
foca?
meu desejo é torrencial
crepitando potências
pulsando provocações
pele expande
– tambor –
ressoa
comunhão
possível
em vídeo
a direção
vem
entre
“Perceber envolve
novos hábitos do olhar”
Foi um susto
olhar de perto
a pele da semente
é como sair do corpo
asas alucinadas
pelas passagens
acolher os deslocamentos
Se eu só pudesse latir
numa reprodução
gaguejante da linguagem
não falava da terra
seria só o cheiro dela
molhado
lama
uvas pisadas
Pensar é estar doente
dos olhos
percebo que as asas
que o cheiro
que a pele da
uva quer um pouco
de rudeza
É urgente desaprender
o cotidiano, praticar
a desobediência metódica
ainda que sob a pena
de queimar
na fogueira do
nexo
Façamos dos clássicos
monumentais elementos
explosivos
é preciso recriar a queda
do muro
de Berlim
de Edward Colston e Colombo
do Coronel Bertaso e
seus consortes
reencenar uma iconoclastia sistemática
substituir a vontade de
perdurar pela ardência
erótica
dos corpos
Liberdade irrestrita sem
concessões
helenas fugidias
por uma arquitetura
vivente
o que mais nos toca
destruir?
Fomos devoradas pela História
mas agora
muros serão
lousas para a renovada poesia.
Deve ter sido um pesadelo
É comum que seja assim nos sonhos
Eu assisto uma outra mulher
E a outra mulher também sou eu
Deve ter sido um pesadelo
Assistir meu próprio julgamento
O nome da mulher era o meu
Mais o nome da minha mãe
Deve ter sido um pesadelo
Porque muitas palavras ali
Tinham endereço certo no meu corpo
Mal curadas cicatrizes na pele nos poros
Deve ter sido um pesadelo
Eu aparecia mais jovem mais bela
Mais recatada e mais doce
E as feridas eram mais fundas
Deve ter sido um pesadelo
Afinal ensaiei tantas vezes
Suportar punições pela roupa curta
Humilhações por existir em público
Deve ter sido um pesadelo
Ainda não consegui contar que sempre
Que ia dar uma aula imaginava ofensas
Aos meus seios livres sob a blusa leve
Deve ter sido um pesadelo
Também retorna feito cinema aquela vez
Vestido branco no apartamento
Eu sem achar o caminho da porta
Deve ter sido um pesadelo
A camiseta fina do uniforme
A adolescência teimando em exibir-se
O homem na calçada negociando o colo
Deve ter sido um pesadelo
Rumores ouvidos nos corredores
Enquanto gastava meu latim:
As pernas os pelos mau gosto meu gosto
Deve ter sido um pesadelo
Troquei tantas vezes de roupa
De namorado de profissão
Troquei de amigos e de cidade
Deve ter sido um pesadelo
Troquei até de família
Tentando escapar do julgamento
Ensaiei todos os gestos perfeitos
Deve ter sido um pesadelo
Não pode a vítima tornar-se ré
O algoz não devém vítima
As fotos já tinham sido apagadas
Deve ter sido um pesadelo
O homem disse algo sobre estar apagada
A mulher ou a luz estava apagada?
O estuprador foi comparado a um menino
Deve ter sido um pesadelo
Criminoso algum evoca crianças
Sobretudo um homem de tanto valor
Em dólares e status social
Deve ter sido um pesadelo
Falava-se de uma festa
Nós nem tínhamos o dinheiro pra entrar no clube
Nem nos lembrávamos como escapar do labirinto
Deve ter sido um pesadelo
Um sem número de rostos vagamente conhecidos
Alternava-se na tela da videoconferência
Entre o silêncio e o descalabro
Deve ter sido um pesadelo
Porque dias se passaram e ainda sinto
Um gosto amargo constante na boca um zumbido
Da expressão “pose ginecológica” no ouvido esquerdo
Eu queria que fosse só um pesadelo
Também para você, Mariana
Mas aconteceu pela segunda vez
E te abusaram em nome da justiça
O mato não mata
a mata não bala
semente
a mata sim
Ave Terra
cheia de Marias
é hora de louvá-la
A mata não mata
o homem que calça
pés de terra
a mulher mãos de
terra
a criança terracota
O pequeno cresce com
a mata
e dentro dele só há
Futuro
ele quer ser do tamanho
da mata
ele quer ser
Escute, animal!
Olhe com atenção!
Sinta!
Tenho que te falar
assim, animal
com a força das
palavras que já
esquecestes
Tu, animal sem memória
sem camadas no olhar
animal que só sabe
aproximar com zoom
palavra estrangeira
cujo significado já
esquecestes
Memória diluída
gasta
de um corpo flácido
fala ácida
consciência miúda
Decai, animal…
desmonta
o que era homem
ficou só a ruindade
e uma sociedade disciplinar
radicalmente
imune
irremediavelmente
isolada
mata o mato todo
A gente não toca
não tem boca
tem máscara
a casa
é cárcere
escola
teletrabalho
o corpo estéril
histérico
Para, animal!
a mata não mata
mas no mato
só os fortes sobrevivem
os livres e fortes
vivem
só quem quer ser
Floresta
Em cada rincão desta terra, limite medido à colônias hereditárias, frestas
por onde o odor azedo de esterco passa
há uma gota de sangue
um sinal de cansaço
um sabor de desgosto.
É preciso, sempre dissimular e limpar…
avidamente a roupa com esfregão – mancha é preguiça. Limpar o mato alto que é sujeira,
o terreno das árvores, as plantas dos pulgões, das lagartas, a parreira da doença que ela ainda
não tem. Limpar a carne da sujeira do desejo porque ócio é desleixo. Livrar o corpo da dor
constante como a sujeira que diariamente surpreende, a sujeira, não a dor.
É que o esfregão, o lava-jato, a roçadeira, a motosserra, o trator, o pulverizador, e o patriarca
roncam e zunem ferozmente
porque é preciso a todo instante dissimular…minha voz altiva…
É que nesta cada tão minha quanto o tempo do pinheiro contíguo me diz
nesta terra tão eu quanto sua altura imponente
tenho raízes feridas.
Caminho a passos pesados através do mato salvo dentro das botas de borracha. Caminho lento
por entre contratos assumidos, assinados, território expropriado – meu corpo.
Será preciso anos de esquecimento até que em cada confim desta terra já não haja
na morte e na vida
rastros de rancor nem gotas de veneno.
À hora magenta do dia
tenho raízes feridas
sou terra judiada
sonhando em rebrotar.
Uma fala se abre
para a negatividade
Minha voz inversa
experimentada na materialidade
do horror diário
na substância bruta dos nomes
que não sabe pronunciar
na solidão absoluta do
imperioso silêncio
Se eu digo “fora” é
aqui dentro que machuca mais
a pior violência é ter de
calar
assim o poema não cumpre
sua tarefa de curto-circuito
E se digo nessa voz
mecânica
me desfaço em
infinitos pixels
diminutas partes do
holograma eu
transformação incorpórea
O que resta para o curto-circuito
do poema?
Choque elétrico é muito
pouco
Volto ao estado de natureza
I
Chove, milhares de lágrimas.
As árvores de dourada cabeleira
cantam para a cidade adormecida
a fauna toda de farra
trespassa fronteiras
derruba porteiras
portões desossados
fanfarra da bicharada
pisoteia o vazio contínuo da cidade
os animais e suas famílias seguem
surpresos pelo não-saber e gozam
Chove, milhões de lágrimas.
II
A paisagem exterior ao meu coração
é neblina.
Não se sabe de que lado vem a morte
lá fora, na cidade amortecida
não importa o sol ou a lua
não importa a exterioridade das estrelas
a paisagem ao vento dobra a esquina
e aqui dentro o tumulto
íntimo faz um rugir
de asas
é normal, tanta, tanta morte na
paisagem exterior ao meu coração?
III
Quero ver a cidade calada.
Ladeira abaixo
ladeira acima
a cidade do trabalho
obrigatoriamente estática
entra para as estatísticas
na volta da esquina
me assusta o tenebroso
corpo estranho
ESTRUTURA DE EMERGÊNCIA
alva lona estéril – contágio
medo distância silêncio
IV
Cada uma das vezes que passo
ladeira abaixo
me surpreende o
corpo estranho
como se não soubesse
como se não fosse real
ESTRUTURA DE EMERGÊNCIA
é cidade estarrecida
obrigada à imobilidade
se sai, é com olhos sorrateiros
entreabertos para a morte
mirada certeira no próximo destino
V
Quero ver a cidade deserta
mas ela insiste, ela teima
corre da morte, como inseto pisado
corre da fome que nem retirante
corre, corre, corre como sempre
morre como nunca
na paisagem exterior ao seu coração
não importa o índice
da morte diária
importante mesmo é o
índice da produtividade
cidade viva, vai e vem
Chove, milhões de almas.